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domingo, maio 18, 2014

Minhas cidades e eu_primeira parte

Nascida em Feira de Santana, me recordo de olhar pro céu com certa freqüência, talvez como um sinal de reconhecimento ou de desencontro com aquele lugar. Lembro muito bem de aos quatro ou cinco anos sentir uma nostalgia de um lugar que não era aquele, uma saudade de um tempo diferente, talvez fosse um lugar do futuro ou de um passado tão distante que eu só poderia reencontrar andando pra frente. Lembro de quintais e garagens, de ir de bicicleta pra escola e de andar pelo meio-fio como uma equilibrista a um passo dela mesma. Lembro das brincadeiras no meio da rua com os vizinhos, do doce de leite de prato que minha avó fazia que era de babar, literalmente. Lembro das primeiras paixões, dos primeiros sonhos, de cantar enlouquecidamente pela escola toda vez que tinha aula vaga. A escola foi uma boa cidade pra mim, não necessariamente pela qualidade do ensino, mas pelas experiências que me proporcionou. Lembro do tédio que eu sentia dia de domingo naquela cidade, como se ali tivesse uma convergência energética estranha que me deixava em suspensão; lembro do centro espírita ao lado da minha casa e dos cachorros latindo em dia de sessão; lembro das primeiras experiências com as mortes, dos corpos velados lá em casa, dos corpos mortos lá em casa e do meu próprio corpo sentindo e temendo essas mortes, ainda que aquilo pra mim deflagrasse um universo interessantíssimo a se conhecer, o último sopro. A passagem para Salvador se deu aos 18 anos quando vim fazer faculdade e a cidade surgiu como um delicioso lugar de liberdade onde eu poderia viver sem ter hora de voltar pra casa, viver suas ruas, sua cultura, seus bares, sua arte e suas pessoas, fazendo muitos amigos e absorvendo todas as oportunidades de crescimento e conhecimento que ela me dava. Salvador parecia pra mim aquele presente que vai se revelando aos poucos e vai te seduzindo, quando você menos espera já está dormindo agarrado com ela e tanto tempo se passouSalvador é hoje como um casamento, eu sei que posso me separar dela a qualquer instante porque ela também é claustrofóbica, mas ao mesmo tempo ela me convida a ir mais fundo e a penetrar em seus mistérios, tomando coragem para a próxima etapa, o próximo ciclo, assim também como no casamentoApós algumas decepções de convivência, comum em qualquer relação, tenho um ataque de quase ogeriza à cidade, rodo a roleta pra tentar a sorte em outro lugar, quase moro em Minas Gerais, quase moro no Capão, quase moro em Amsterdam, quase moro em Santa Catarina, mas parece que Salvador tinha feito um trabalho para mim e eu não consegui me separar dela e ainda, de caso pensado ou não, vá saber, ela me dá dois filhos como que traçando um vínculo pro resto da vida entre nós. Olho esta cidade, observo em silêncio seu movimento, essa barriga que gera e vez por outra expulsa seus filhos, muitas vezes filhos ilustres que se nutriram dela, mas que tiveram que crescer em outras cidades, expandiram seus horizontes em outros territóriosSalvador é uma prova de resistência, há que se ter paciência com ela, ainda bem que eu tenho a minha rede e nela posso me conectar e desconectar com a brisa que entra pela janela.